Marco Gomes
Abstract
Abstract english
A conspiração do dia 25 de Abril de 1974 marcou o início de uma profunda ruptura com as estruturas político-sociais dominantes em Portugal. Os militares colocaram um ponto final na mais longa ditadura europeia do século XX e assumiram a função de agentes de mudança no contexto da realidade histórica. Essa acção fracturante contribuiu em larga escala para o aparecimento de um dos aspectos mais específicos do processo revolucionário português: os movimentos populares.
Milhares de mulheres e homens decidiram lutar por uma cidadania até ao momento negada. Imaginaram um país capaz de realizar sonhos e colocaram em marcha uma dinâmica social que impressionou pela vitalidade, pela participação, pela dimensão associativa, constituindo para muitos uma escola cívica. No entanto, a outra face desta exteriorização popular remete também para as contradições geradas por décadas de autoritarismo, obscurantismo e repressão. Portugal foi abalado por fortes tensões políticas e sociais. Decorrente do combate contra a injustiça e a intolerância, ganhou força a problemática relacionada com a desproporção de poder que desde sempre regulou as relações masculino-femininas, a desigualdade entre os dois sexos.
A mulher portuguesa que acordou no dia 25 de Abril de 1974 vibrou com a acção dos soldados revoltosos. Chegara o momento de destruir – ou pelo menos minimizar – os obstáculos que os demais períodos históricos haviam colocado à afirmação do género feminino. Um desafio não desprovido de dificuldades. A mulher ocupou então o espaço público e partiu em busca da sua identidade, direitos, dignidade e respeito por uma incontornável alteridade. O restabelecimento das liberdades de expressão, pensamento e associação desempenhou um papel nuclear no combate por estes desígnios.
Num dos importantes contributos para os Estudos de Género em Portugal, Manuela Tavares (2000, 55) fala na existência de uma “cidadania feminina”, consequência das mutações sociais e políticas que se seguiram à queda do Estado Novo. Integrada num modus vivendi profundamente heterogéneo, a mulher conquistou espaços de intervenção e participou nos grandes debates/confrontos suscitados pelo período revolucionário. Essa necessidade de expressão, potência comunicativa, versou o âmbito político, social e cultural. E recorreu a diversos tipos de linguagens (verbal, cinésica, iconográfica) e canais de transmissão (jornais, boletins, revistas, manifestos).
Mesmo considerando que os movimentos sociais em que esteve inserida nem sempre traduziram as reivindicações intrínsecas à “questão feminina”, o 25 de Abril mexeu com o íntimo da mulher, mobilizou o seu talento e capacidades, deu-lhe a palavra nas greves e nas manifestações, nos sindicatos ou nas assembleias de trabalhadores. E se falamos deste excitante mergulho discursivo, espontâneo ou pensado, é porque existiu um tempo anterior. Um tempo onde a condição feminina sofreu com o conservadorismo de uma organização política e social resistente à mudança e que atribuía aos homens e às mulheres funções sociais “naturalmente” dissemelhantes. Esse foi o tempo do Estado Novo.
Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (1974, 26) insurgiu-se contra o pensamento que encara o conceito de passividade como um dado biológico da mulher. Beauvoir preferiu antes afirmar que esse destino passivo lhe era “imposto pelos seus educadores e pela sociedade”. As palavras da filósofa assumem um carácter axiomático quando revisitamos a sociedade arquitectada por Oliveira Salazar. De facto, o regime corporativista procurou, insistentemente, instrumentalizar a diferença entre os sexos em favor de determinados estereótipos mentais, confinando a mulher às funções domésticas e familiares. Esta reconfiguração da diferença definiu e acentuou-lhe o estatuto subalterno.
E nem mesmo a Revolução de Abril facilitou a assimilação consistente de uma nova perspectiva de género. Durante muito tempo escasseou o conhecimento sobre a acção e o pensamento de importantes figuras e movimentos internacionais feministas: das mulheres darevolução francesa combatentes pela liberdade aos grupos de 1840 saídos da Convenção de Sêneca Falls, das anarco-feministas Emma Goldman e Voltairine de Cleyre às timoneiras da segunda vaga do feminismo, já no século XX, passando por Simone de Beauvoir, Betty Friedan, ou pelos Women Liberation Movement. A sociedade patriarcal, as suas representações simbólicas e a memória colectiva dos portugueses não podiam ruir de um dia para o outro.
Um dos exemplos significativos desta incompreensão surgiu da evocação de uma queima de soutiens não confirmada numa manifestação no Parque Eduardo VII, em Janeiro de 1975. Sobre a iniciativa feminina, destinada a reivindicar o direito à liberdade sexual e ao aborto, logo recaíram comentários pejorativos, deturpações de alguns jornais e, no local, impropérios verbais e físicos por parte do sexo oposto. Maspor agora o objectivo desta reflexão é bem mais modesto: demonstrar como a mulher desempenhou um papel relevante durante o processo revolucionário português; focar a dimensão criativa dos signos e dos meios de comunicação utilizados; e aludir às principais alterações que afectaram o seu quotidiano.
Estado Novo: a mulher “naturalmente” diferente e ausente
Mais do que “pessoas individuais, detentoras de direitos”, a ideologia do Estado Novo assemelhava as mulheres a “seres mitificados” (Vicente 2009, 455). As directivas educadoras confinavam a mulher ao lar, local de eleição para desenvolver a sua actividade de esposa atenta e mãe sacrificada. O trabalho feminino fora de casa não era apreciado porque perturbava a coesão familiar. A submissão em relação ao homem, ao qual devia obediência, figurava nos documentos jurídicos. O conservadorismo católico regulava os costumes e a moral. E a censura, longe de se resumir ao sistema anedótico do corte acéfalo e do óbice imbecil, modelava as ideias e procurava conservar o ethos cultural definido.
Salazar investiu forte na criação de estruturas direccionadas para inculcar um determinado sistema de valores. Importava acabar com o “declínio social” provocado por anos de demoliberalismo. A Obra das Mães pela Educação Nacional e a Mocidade Portuguesa Feminina desempenharam essa função de formatação ideológica. As duas organizações nasceram no biénio 1936-1937, anos da inspiração fascista, e colocaram em prática aquilo que Patrick Champagne (1990, 22) designa por “trabalho de imposição”, sempre com o intuito de formular uma verdadeira “crença política”.
A oposição feminista ao sistema autoritário caracterizou-se essencialmente por um “discurso de lamento”. O pensamento da mulher recuou para “posições de defesa e de resistência”, procurando “sobreviver aos sucessivos ataques de que foi alvo” (Vicente 2009, 455). É preciso recuar ao tempo em que Salazar ainda não tinha disseminado as “categorias” que viabilizam uma determinada “percepção do mundo social”, utilizando a terminologia de Pierre Bourdieu (1999), para encontrar uma relevante geração de mulheres feministas. Tal como na Europa e nas Américas elas surgiram no século XIX, destacando-se, através da escrita, os nomes de Antónia Pusich (1805-1883), Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921) ou Carolina Michaëlis (1851-1925), entre outras personalidades. A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas notabilizaram-se pela acção desenvolvida.
Todo este movimento haveria de sucumbir ao controlo da política ditatorial. E nem a paradoxal concessão do sufrágio, apenas, às mulheres diplomadas com cursos superiores ou secundários, em 1931, evitou a diminuição da condição feminina. Os episódios de crítica ao antigo regime foram, de facto, efémeros. Mas acontecerem. É inevitável mencionar a actuação da Maria Lamas (1893-1983), jornalista que se evidenciou com o livro As Mulheres do Meu País (1948). E a advogada Elina Guimarães (1904-1983), porque colocou a causa feminina no centro das suas preocupações. Ou ainda as escritoras Florbela Espanca (1894-1930) e Irene Lisboa (1892-1958). Entre as colectividades, a Associação Feminina Portuguesa para a Paz e o Movimento Democrático das Mulheres pugnaram pelos direitos da mulher.
Apesar de tudo, a década de 60 iniciou uma mudança de mentalidades e comportamentos. Uma nova cultura juvenil entrou em expansão, da música pop ao biquíni. Vendia-se a pílula nas farmácias. Em Maio de 1968, os ecos de Paris aguçaram a rebeldia já em gestação e polarizaram os espaços de convivência. A literatura internacional intensificou-se nos circuitos clandestinos. São fermentos que criaram áreas de intervenção para os jovens. Portugal abriu-se à Europa. A economia desenvolveu-se e a mão-de-obra feminina disparou. O ideal de família entrou em crise. A mulher invadiu a universidade e o movimento estudantil facilitou o debate sobre a emancipação feminina. Mas sem nunca assumir um carácter prioritário. A luta contra o fascismo ocupava o lugar central.
O ano de 1969 assinalou o fortalecimento das reivindicações femininas por melhores condições de trabalho, aumento de salários e criação de estruturas sociais. Isto para além das manifestações contra a guerra colonial e os presos políticos. Milhares de operárias uniram-se nos protestos, ao mesmo tempo que se acentuou a repressão policial. Ficaram célebres as greves dos braços caídos (Tavares 2000, 55).
Das Novas Cartas Portuguesas aos direitos e movimentos conquistados
Desde o século XIX que a escrita constitui um privilegiado modo de expressão para o universo feminino português. Em momentos de asfixia, iludidos os labirintos da censura, emergiu como o derradeiro canal para obter oxigénio. Em Abril de 1961, um artigo publicado na revista da Associação Académica de Coimbra, “Via Latina”, penetrou no imaginário colectivo. Intitulava-se Carta a uma Jovem Portuguesa e, versando sobre a clausura a que as jovens universitárias estavam votadas, defendia a emancipação da mulher. O texto, anónimo, originou uma enorme celeuma com o jornal católico Encontro (Bebiano, Silva 2004).
Volvidos 11 anos, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa (1972) publicavam Novas Cartas Portuguesas, a mais violenta crítica aos costumes vigentes. O livro, composto por cartas, poemas e curtos ensaios, denunciava a opressão que escravizava as mulheres. Tocava os caminhos do sexo e da sexualidade, censurando a guerra colonial. Utilizava a denúncia para, a partir dela, infringir o paradigma social dominante. A obra escandalizou. As autoras foram levadas a tribunal e acusadas de pornografia e ofensa à moral pública, sendo o livro apreendido.
O caso teve amplas repercussões internacionais. Muitas feministas insurgiram-se contra as representações portuguesas, através de marchas, manifestações e cartas ao governo. A embaixada na Holanda chegou a ser ocupada por feministas daquele país. As três Marias, como ficou conhecido o processo, foram absolvidas a 7 de Maio de 1974. A Revolução de Abril foi também para esta causa o advento de grandiosas conquistas: liberdade de expressão e pensamento e livre criação artística. O livro, traduzido e editado em vários países, favoreceu uma nova consciência social receptiva à urgência de proibir a discriminação em função do sexo. Aliás, um desígnio assumido como ideal de Abril e consagrado na Constituição de 1976.
Derrubado o vetusto Estado Novo, e depois de numerosas lutas políticas e sociais, iniciou-se a construção de uma democracia do tipo ocidental. O período de transição para a democracia marcou o início de profundas alterações no quotidiano de muitas mulheres, com impacto directo nas suas vidas. Por exemplo: as pessoas casadas pela Igreja passaram a poder divorciar-se; consagrada a igualdade entre mulheres e homens em todos os domínios da vida; fixado o salário mínimo nacional; abertura às mulheres das carreiras da magistratura judicial, do ministério público, dos funcionários da justiça, da diplomacia e de todos os cargos administrativos locais; revogadas as disposições que reduziam penas ou isentavam de crimes os homens, em virtude das vítimas desses delitos serem as suas mulheres ou filhas; abolido o direito do marido abrir a correspondência da mulher.
Outras medidas conferiram direitos na área da segurança social e da família. Edificou-se uma rede de equipamentos sociais (creches, jardins de infância) e infra-estruturas básicas (água, electricidade e esgotos). Reforçaram-se os serviços públicos. Seguiram-se alterações de fundo no Código Civil e no Código Penal. E se uma parte desta evolução deveu-se ao incontornável percurso para a democracia e para o socialismo, a outra face do trajecto deriva da participação activa da mulher.
Mas como se materializou essa relevante actuação no imediato pós-25 de Abril? Importa referir que a iniciativa feminina conheceu dissemelhantes graus de visibilidade. Acentuou-se, sobretudo, nos domínios da habitação (comissões de moradores), das lutas laborais e sindicais. Além da questão da contracepção e do aborto. Logo a 30 de Abril de 1974 registou-se a primeira ocupação de casas em Lisboa, no Bairro da Boavista. Dois dias depois foi a vez do Bairro da Fundação Salazar que, em homenagem, passou a designar-se Bairro 2 de Maio. A acção das mulheres foi decisiva.
O fenómeno das ocupações prolongou-se ao longo de 1975, adquirindo também a vertente de serviço à população. Edifícios foram transformados em infantários, clínicas de saúde e sedes de grupos culturais, como sucedeu com a companhia de teatro A Comuna. Ainda no início de 1975 começaram as ocupações de propriedades agrícolas, magistralmente retratadas pelo fotógrafo italiano Fausto Giaccone. “O que queremos é trabalho e havemos de consegui-lo”, foi uma das frases que uniu o esforço de muitas mulheres nestas reivindicações. Simbolicamente, colocaram em causa o direito à propriedade.
Num período caracterizado pela fragilidade das instituições, muitas lutas operárias gravitaram em redor da voz feminina. Assim aconteceu com as 180 trabalhadoras da empresa sueca Cintidel que, em Lisboa, cercaram o Hotel Ritz. Pretendiam obrigar a administração a negociar a viabilidade da fábrica e a garantir os postos de trabalho. A operação envolveu ministérios, o primeiro-ministro e o embaixador sueco. Vários processos de autogestão foram conduzidos por mulheres. Sempre numa perspectiva de defesa do direito ao trabalho, uma questão nuclear nos meses a seguir ao golpe militar. Outros combates centraram-se no saneamento dos patrões, aumento dos salários, pagamento de horas por assistência aos filhos, redução do horário de trabalho ou a abolição do controlo da ida à casa-de-banho.
Em sinal de protesto, não raras vezes viram-se obrigadas a impedir a saída de produtos das fábricas. Fizeram greves e exigiram a readmissão de funcionárias, chegando mesmo a optar por acções violentas, como o sequestro do patrão. Noutros casos assumiram elas próprias a produção das empresas e o processo de comercialização. Nas palavras de Manuela Tavares (2000, 29), são experiências que se transformam em “espaços de aprendizagem e de elevação da consciência de centenas de mulheres”. Mas não só.
Várias associações assumiram uma função determinante neste despoletar de consciências. O Movimento Democrático das Mulheres e o Movimento Internacional de Mulheres Cristãs deram sequência ao trabalho iniciado antes do 25 de Abril. O primeiro colectivo centrou-se em reivindicações político-sociais de carácter geral, enquanto o segundo incidiu preferencialmente no meio rural. Apesar de desenvolverem múltiplas iniciativas, diversas associações elegeram, nesta fase, a despenalização do aborto como denominador comum (Ibidem, 62). Destacam-se ainda, entre um número considerável de agremiações, o Movimento de Libertação das Mulheres (Maio de 1974) e a União das Mulheres Antifascistas e Revolucionárias (Setembro de 1976).
Foram também criados departamentos dedicados à problemática da mulher no interior das forças políticas, no Partido Socialista, no Centro Democrático e Social ou no Partido Comunista – Organização das Mulheres Comunistas. É notório que, na prática, muitas reivindicações careceram de sedimentação. Mas não deixa de ser verdade que este movimento associativo foi ganhando maturidade e estreitando a ligação com o próprio sujeito.
A participação feminina nos conflitos ideológicos
É indiscutível que a atmosfera do período revolucionário potenciou as energias da população portuguesa. Foi um tempo veloz, estonteante, de vertiginosa mudança, que evidenciou maior despreocupação em relação aos procedimentos sociais. Importava recuperar a dignidade perdida e construir uma renovada sociedade, uma mulher nova, um homem novo. À mulher coube uma função específica neste projecto. E não se tratou somente de uma emergente consciência de classe no mundo do trabalho. Porque tudo era política. Respirava-se política. As grandes discussões ideológicas contaram com a presença da mulher, em áreas tão distintas como a educação, a imprensa, as artes, o teatro ou a literatura.
Pelo protagonismo e enquanto actores políticos dinâmicos, afigura-se incontornável referir os nomes de Maria de Lurdes Pintasilgo e Isabel do Carmo. Formada em engenheira química, Maria de Lurdes Pintasilgo foi, em Julho de 1974, a primeira mulher ministra de Portugal, chefiando a pasta dos Assuntos Sociais. Depressa percebeu que uma “revolução implica uma nova cultura” (Pintasilgo 1975, 3)1. Presidiu e reconfigurou a Comissão da Condição Feminina. Desempenhou vários cargos de relevância nacional e internacional e permanece no imaginário dos portugueses com a única mulher a chefiar um governo (1979-1980).
Maria Isabel do Carmo abraçou igualmente os combates políticos. Ainda na clandestinidade fundou e liderou, juntamente com Carlos Antunes, o Partido Revolucionário do Proletariado e as Brigadas Revolucionárias, estruturas conotadas ideologicamente com a esquerda radical e que advogavam a luta armada. O Partido Revolucionário desempenhou uma intensa actividade política no pós-25 de Abril, estando ligado ao desvio de centenas de armas do Exército que serviriam para organizar uma insurreição popular em caso de contra-golpe militar. Esta médica de profissão dirigiu o jornal “Revolução” e tornou-se um ícone da extrema-esquerda. No dia 5 de Novembro de 1975 exigiu ao“Século” uma entrevista com destaque especial, não se coibindo de afirmar: “Temos umas contas a ajustar com o vosso jornal” (Carmo 1975, 1)2.
Efectivamente, as lutas políticas travaram-se em todas as frentes. Facilmente a imprensa reflectiu díspares concepções do real. Ficaram célebres as crónicas de Natália Correia nos diários “A Capital” e “a Luta”, envolvendo-se em inflamadas discussões. A poetisa açoriana insurgiu-se contra os débeis órgãos de poder. Suscitou críticas por parte de intelectuais. Clamou por liberdade, pluralismo democrático e atacou renovadas formas de censura. Forçou o genial e reservado poeta Miguel Torga (1975, 7) a quebrar “as virtudes da mudez” e a enaltecer “a nobreza mental” da autora de Não percas a Rosa.
As páginas do semanário “Tempo” catapultaram outro temperamento feminino. Trata-se da polémica jornalista Vera Lagoa. A 21 de Agosto de 1975, em jeito de desabafo, fez uso da sua agressiva e provocatória linguagem e pediu ao primeiro-ministro: “Vasco Gonçalves, oiça o meu grito!” (Lagoa 1975a, 3) A cronista acentuou as críticas quando, no mês seguinte, declarou à figura mais alta do Estado: “Senhor Presidente, perdi-lhe o respeito”. O texto acusava o general Costa Gomes de ter usado os generais António Spínola e Vasco Gonçalves “como capas que vão sendo deitadas fora, quando desnecessárias”. Acrescentando: “O senhor, Senhor Presidente da República, não usa apenas óculos fumados nos olhos. Usa-os na alma. Ninguém o entende” (Lagoa 1975b, 3).
A imprensa foi um dos sectores que mais reflectiu as visões díspares do projecto social a edificar, entre os arautos da democracia representativa e os defensores do modelo marxista colectivista. Existindo ainda os adeptos do socialismo utópico, a via socialista-populista da extrema-esquerda. Sucederam-se dramáticas disputas pelo controlo dos órgãos de comunicação, na Rádio Renascença, no “Diário de Notícias”, no “República”, além de outros meios de comunicação. Maria Antónia Palla, Maria Adelaide Paiva, Luísa Dacosta e Maria de Lurdes Pintasilgo integraram um Conselho de Imprensa destinado à ciclópica tarefa de definir regras de conduta para jornais e jornalistas. Ciclópica tarefa porque muitos dos protagonistas do período revolucionário partiram do princípio de que o controlo dos media assegurava a vitória política.
Helena Marques abandonou o “República” e seguiu o grupo de jornalistas que fundou “a Luta”, depois do conflito que os opôs aos tipógrafos do jornal fundado por António José de Almeida. O diferendo que envolveu o diário da capital adquiriu mesmo invulgar dimensão internacional. O chefe dos serviços estrangeiros do “Corriere della Sera”, Renzo Carnevali, demitiu-se porque um título, que denunciava a censura dos tipógrafos do “República”, foi substituído durante a noite sem a sua permissão. Itália e França foram países onde o “caso ‘República’” agitou com fragor a opinião pública e os meios políticos e intelectuais. Discutiram-se aspectos como a Lei de Imprensa, a hegemonia operária, o direito à informação, o peso do director e do conselho de redacção, o projecto da esquerda portuguesa e francesa, o eurocomunismo ou os sistemas do leste europeu (Mesquita 1994).
Mas outras mulheres marcaram o pulsar da imprensa. Num momento conturbado de “O Século”, ficou célebre a entrevista (1975) que Maria Fiadeiro realizou ao seu novo director Francisco Lopes Cardoso, operário linotipista daquele jornal. Assim como as crónicas de Alice Gomes (“A capital”); as reportagens sobre o Portugal rural de Lurdes Féria (“Diário de Lisboa”); as entrevistas políticas de Helena Vaz da Silva (“Expresso”); o serviço de Alice Nicolau (“Diário de Lisboa”) aquando da Conferência de Helsínquia (1975); as recordações de Gina Freitas sobre a força ignorada das companheiras que ficaram na sombra (“Diário de Lisboa”). Ou ainda as crónicas radiofónicas de Diana Alhandra centradas na mulher no momento presente (Rádio Clube Português).
A incontrolável vontade de participar na construção do país estendeu-se a todas as áreas. E foi bem evidente nos principais conflitos no domínio da cultura. A discussão em torno da nacionalização do teatro polarizou os debates a partir de Março de 1975. O entendimento acerca do conceito de cultura colocou em confronto directo o Partido Comunista e o Partido Socialista. Não se confinando, porém, a esta dicotomia. José Viena (PCP) e Maria Barroso (PS) trocaram cartas e extravasaram para os jornais inconformismos. A actriz casada com o líder do PS, Mário Soares, deixou bem clara a sua posição: “Eu não serei conivente, caro amigo, no assassinato da liberdade de expressão do pensamento em Portugal, […] eu não serei conivente numa nova forma de amordaçamento do Povo Português” (Barroso 1975, 4)3. O poeta David Mourão Ferreira chegou a ser saneado da direcção de “A Capital” por ter apoiado Natália Correia. Também ela contra a nacionalização do teatro, tal como a actriz Glória de Matos.
No pós-25 de Abril a cultura preocupou-se, primeiro, com a eliminação de um passado opressivo, homenageando os heróis da liberdade e colocando em prática projectos de acção. Depois com a organização dos demais sectores. E logo a acção das diferentes áreas artísticas contraiu um carácter fortemente corporativo (Dionísio 1993). Os conflitos laborais eclodiram e reflectiram, frequentemente, concepções culturais e estéticas antagónicas. Em resposta ao ministro da Comunicação Social, Sophia de Mello Breyner (1975a, 19) não se cansou de sublinhar que “um verdadeiro período revolucionário está aberto a todas as formas de criação”, referindo-se à pertinência das artes de vanguarda.
A poetisa designou ainda de “festival de invejas” outra inflamada contenda que abalou o campo das artes plásticas, na sequência da mostra de pintura portuguesa que deveria ter sido exibida em Paris e, posteriormente, nos países de Leste. Mas que nunca se chegou a realizar. Assumindo-se “radicalista por princípio e por método”, Sophia de Mello Breyner recordava que sempre os festivais de inveja haviam conseguido “adaptar-se a todas as ideologias e a todas as circunstâncias políticas” (1975b, 10). A polémica gravitou em redor dos 38 nomes que estariam representados na exposição.
Por ocasião do I Congresso de Escritores Portugueses, em Maio de 1975, várias intérpretes da escrita fizeram questão de deixar o seu testemunho. Alice Gomes, Natália Nunes, Agustina Bessa-Luís, Maria Alzira Seixo, Noémia Seixas, Teresa Crespo ou Lucinda Araújo foram algumas das escritoras que versaram sobre as condições da criação literária, a atitude a tomar diante da nova situação política, ou os aspectos ideológicos do escritor na revolução cultural e o seu futuro enquanto profissão.
O “assalto” ao espaço público
A proliferação incontrolada de imagens comunicantes constituiu uma das particularidades da “Revolução dos Cravos”. Portugal foi simultaneamente actor e figurante de uma história processada a um ritmo alucinante. É interessante perceber o carácter público de uma linguagem colectiva, até então amordaçada, que emite e recebe na esfera pública. A prática social e a acção política adquiriram as mais diversas formas. Falar, cantar, pintar, escrever, ou dançar, passou a fazer parte de um conjunto de elementos expressivos que assinalaram a nova ordem comunicacional.
Uma excitação livre que obrigou à experimentação desta nova condição de ser e poder. Teresa Torga, de 41 anos, não enjeitou essa oportunidade. No dia 6 de Maio de 1975 decidiu dançar na via pública ao mesmo tempo que realizava um strip-tease. Maria Teresa era o nome desta fadista e actriz de revista. Mas preferia Teresa Torga em homenagem ao grande poeta. O episódio foi notícia no “Diário de Lisboa” (1975a, 4). Atraiu a atenção dos transeuntes, dos automobilistas, e do fotografo António Capela. Zeca Afonso leu o relato, criou a sonoridade, emprestou-lhe a voz e posterizou-a.
A liberdade que o 25 de Abril proporcionou excedeu a retórica da comunicação política, dos discursos políticos, incidindo também nos aspectos simbólicos da memória colectiva e nas mais diversas formas de comunicação. A praceta da rua de Pedrouços, em Lisboa, foi denominada Largo Maria Isabel Aboim Inglês, professora e militante antifascista. Como se tratasse de suprimir o tempo antes e perpetuar o depois. Multiplicaram-se os tributos a Catarina Eufémia, ceifeira alentejana assassinada pela polícia e transformada pelo Partido Comunista numa lenda da resistência antifascista.
O cinzento, o negro, os slogansda força política“consensual”cederam lugar ao quadro multicolor do Portugal livre, marcado pela pluralidade de vozes e mensagens. A mulher enriqueceu este profícuo período com boletins, manifestos, revistas e jornais. Os conteúdos versaram o cariz político, de que é exemplo o “Boletim da União das Mulheres Comunistas”[M-L]. Ou as temáticas centradas nas reivindicações e problemáticas da mulher: “Boletim MDM”, “Catarina”, “Folha Informativa”,“MDM”, “8 de Março”, “NÓS as mulheres”, “Boletim da UMAR”, “Situação Mulher”, “LUA”, “Jornal 22 de Março”, “MLM”, “Da Mulher”, “Movimento de Unidade Democrática”, “Modas e bordados”. Grande parte destes órgãos derivou do movimento associativo.
Fig. 1. Foram muitas as publicações dedicadas às temáticas feministas que permitiram às mulheres intervir no espaço público.
O contributo feminino, além de estender-se às publicações das comissões de moradores, associações de estudantes, núcleos de trabalhadores ou sindicatos, alcançou a cúpula de alguns meios de comunicação. Em 1975 Maria de Lurdes Belchior assumiu a direcção do semanário “Nova Terra”, enquanto Maria Ângela Vidal dirigiu o “Poder a quem trabalha já”, jornal da Associação de Amizade Revolucionária Portugal-Itália. No ano seguinte foi a vez de Natália Correia liderar a “Vida Mundial”.
A linguagem visual na sua dimensão configurativa e cromática prolongou o sentido das mensagens políticas e ampliou as formas de intervenção no espaço público. Este discurso iconográfico é representado por autocolantes, porta-chaves, objectos decorativos, murais, cartazes políticos, caricaturas, elementos de expressão artística, cartoons ou fotomontagens. As grafias da palavra revolução, da autoria de Ana Hatherly, e as representações humorísticas de Isabel do Carmo simbolizam de alguma forma o lado feminino da Revolução de Abril. Na antecâmara destas manifestações reside, não raras vezes, uma clara intenção política.
Fig. 2. Cartoon de Isabel do Carmo, in “a Luta”, 15 setembre1975.
A música de intervenção foi talvez um dos veículos onde essa predisposição política mais se fez sentir. Representou uma atitude de luta contra a ditadura e um elemento estratégico na orquestração da intentona do dia 25 de Abril. Depois, a música invadiu a imagética colectiva e reflectiu os conflitos ideológicos que então se operavam. O nome de Ermelinda Duarte está associado ao maior êxito comercial deste período. O single Somos livres rapidamente transformou-se num hino para a jovem democracia portuguesa. Teve mesmo direito a um, inédito, curto filme realizado pela RTP, em 1975. A componente política está bem presente nas palavras da cantora: “Gostaria que se entendesse esta canção […] na consciência de que a luta apenas começou e é imperioso ter as armas sempre prontas” (Duarte 1975, 4)4.
Hannah Arendt (1971) lembrou que as revoluções, juntamente com as guerras, representam a fisionomia da última centúria. E enquanto significantes acontecimentos históricos dificilmente limitam às suas fronteiras as inevitáveis repercussões. A singularidade do processo português não apenas decorreu da urgência do país dialogar consigo mesmo, como ainda agitou intensamente a política e a imprensa internacional. Subitamente, turistas, intelectuais, jornalistas e políticos da Europa e das Américas foram atraídos pelo rectângulo da Península Ibérica. Oriana Fallaci, por exemplo, entrevistou os dois principais rostos dos projectos políticos em confronto, Mário Soares e Álvaro Cunhal. A jornalista do L’Europeo não só captou importantes testemunhos históricos, como ainda protagonizou (entrevista Álvaro Cunhal) um dos mais mediáticos episódios do processo revolucionário em curso.
A necessidade de comunicar com o exterior foi particularmente notória no pós-25 de Abril. Em Junho de 1975, ano internacional da mulher, a astronauta soviética Valentina Terechkova aceitou o convite do Movimento Democrático das Mulheres para vir a Portugal. Dois meses antes haviam chegado Michel Foucault e o casal Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Na Faculdade de Letras do Porto, Beauvoir preconizara a “descolonização das mulheres”. Nesse mesmo ano viriam ainda importantes referências da política e da cultura internacional. Algumas com bastante significado para o universo feminino: Alicia Alonso, conhecida bailarina cubana, Elba Verga, resistente chilena, Hortensia Allende, viúva de Salvatore Allende, ou Marguerite Duras, convidada do Festival de Cinema da Figueira da Foz.
Rompia-se, finalmente, o isolamento. “As idas ao estrangeiro de personalidades e de grupos portugueses são vitórias e as vindas de estrangeiros a Portugal são certificados de qualidade” (Dionísio 1993, 176). Maria Barroso não descurou a participação no seminário dos partidos socialistas sobre a condição feminina, em Roma. “A primeira-dama de Portugal” ou “docemente socialista”, assim a definiu a jornalista do Messaggero, mereceu atenção especial do quotidiano romano que a classificou como uma mulher “excepcional”, um modelo de “companheira de ideais e lutas políticas” (Mori 1975, 5). Maria Barroso falou da activa participação na campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, ao lado de Mário Soares, e manifestou-se bastante eloquente quanto ao conceito de família: “Eu não acredito na família como instituição. Mas acredito com todas as minhas forças […] na família como escolha do tipo individual e sentimental” (Idem)5.
É indiscutível que a Revolução de Abril abriu novos horizontes à mulher portuguesa, permitindo recuperar antigas formas de intervenção no espaço público e inaugurar outras. Foi numerosa, efectiva e inédita a participação em manifestações, na gestão de empresas, nos sindicatos, nos órgãos do poder local, nas estruturas populares de base, na imprensa, na cultura e na política. As mulheres impuseram uma presença até aí inexistente e fundaram um caminho de conquistas que ainda hoje não se esgotou.
Este processo de mudança, que já revelara inconformismos latentes na década de 60, foi evidenciando e instituindo dinâmicas ao nível das mentalidades, das rotinas sociais e na forma como a sociedade portuguesa construiu a imagem do género feminino. Mas será possível contar uma história que se orgulha de ter destituído as fronteiras entre os géneros que períodos anteriores foram cristalizando? Não há dúvida de que a acção da mulher e a sua dimensão simbólica têm assumido um carácter preponderante em vários domínios. Diversos são os sectores onde essa acção conquistou espaços e reduziu iniquidades. No entanto, subsistem guetos cognitivos que contrariam ou esbatem a intervenção feminina em diferentes áreas. Ou seja: assiste-se a uma espécie de confronto que opõe as representações modernas da mulher à configuração tradicional da mesma, favorecendo a coexistência das duas perspectivas.
Bibliografia
Arendt H.
1971 Sobre a revolução (trd. Port.), Lisboa, Moraes editores.
Barreno M. I., Horta, M. T., Maria V. C.
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2004 A reidentificação do feminino e a polémica sobre a Carta a uma Jovem Portuguesa, in“Revista de História das Ideias”, n. 25.
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1993 Títulos, Acções e Obrigações: sobre a cultura em Portugal: 1974-1994, Lisbona, Salamandra.
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Imprensa
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1975b Festival de inveja, in “Expresso”, 28 de Junho.
“Diário de Lisboa”
1975° Ex-fadista nua em plena cidade, 7 de Maio.
1975b É imperioso ter as armas sempre prontas, 7 de Maio.
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1975a Vasco Gonçalves, oiça o meu grito!, in “Tempo”, 28 de Agosto.
1975b Senhor Presidente, perdi-lhe o respeito, in “Tempo”, 18 de Setembro.
“Luta (a)”
1975 Uma revolução implica uma nova cultura, 9 de Setembro.
Mori A. M.
1975 Dolcemente socialista, in “Il Messaggero”, 12 de Maio.
“Século (O)”
1975a Para o PRP o reformismo tem duas faces, 6 de Novembro.
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Torga M.
1975 Carta vagante, in “A Capital”, 6 de Março.
Fundos documentais
Centro Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra (pasta feminismo).
Biografia
Biography